no Centro Cultural São Paulo em 11/08/2005.
Fotógrafo: Carlos Rennó
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:: Silvio Feraz
Silvio Ferraz é compositor, nasceu em 1959 na cidade de São Paulo. Foi aluno de Willy Correa de Oliveira, Gilberto Mendes e George Olivier Toni na Universidade de São Paulo. Sua produção composicional é marcada por intenso ecletismo, evoluindo de uma postura pós-serial nos anos 80, passando por um “minimalismo” cuja base teórica remete ao compositor Olivier Messian, proposições que ainda figuram em seu trabalho porém mescladas à idéias provenientes da New-Complexity, tendência composicional conduzida por Brian Ferneyhough, a qual de certo modo, o recolocam em ligação com Willy Correa em seu período anterior a 1980. Desde 1985, participa dos principais festivais brasileiros de música contemporânea, sobretudo do Festival Música Nova e da Bienal de Música Brasileira Contemporânea; no exterior participou do Festival d’Automne à
Paris 1994, Sonidos de las Américas, Carnegie Hall, Nova York, em 1996 e do Encuentro Internacional de Musica Contemporanea, Chile, 2006.
Doutorou-se em semiótica na PUC-SP. Sua obra tem sido interpretada por conjuntos instrumentais especificamente dedicados à música nova, como o Grupo Novo Horizonte e o Duo Diálogos do Brasil, The Nash Ensemble e The Smith Quartet da Inglaterra, o Ensemble Contrechamps da Suíça, The Ictus Ensemble e Het Spectra Ensemble da Bélgica e o Ensemble Nord da Dinamarca. Dedica-se à música nova e principalmente aos modos de jogo instrumentais, à música eletroacústica. É autor de Música e Repetição: aspectos da questão da diferença na música contemporânea (São Paulo: Educ/ Fapesp, 1997) e Livro das Sonoridades (Rio: 7 letras, 2005) e de diversos artigos no campo da análise musical de obras do pós-guerra.
Foi Bolsista da Fundação Vitae em 2003, pesquisador associado à Fapesp desde 1997 e pesquisador do CNPQ, desenvolvendo projetos com principal enfoque na criação de aplicativos para transformação de audio e automação de processos criativos. Recebeu os seguintes prêmios: VI Concurso Ritmo e Som, UNESP, 1º prêmio: Na Seqüência Infinita das Figuras, 1990; 1º Concurso Nacional de Composições para Contrabaixo, 1º prêmio: Estudo de Cores para uma Cena de Erosão, 1991; Concurso Firestone de Música Criativa, prêmio para a composição instrumental Várzea dos Pássaros de Pó, 1992.
Desde 2003 é professor de composição e harmonia no curso de música da Universidade Estadual de Campinas.
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:: Por uma música que não faz falta
Não sei muito bem o que falar num depoimento em relação ao meu trabalho. É difícil, primeiro porque nem sei muito bem o que é isto que chamo de o meu trabalho, isto que venho tentando fazer; não sei qual sua real importância. Só sei que é importante para mim; mesmo quando não quero, eu escrevo música. Não escrevo porque alguém encomenda, aliás, isso ocorre raramente. Escrevo música quase que só para mim.
De tempos em tempos, sou acordado por uma idéia, um gesto sonoro qualquer; uma frase melódica, um som qualquer que fica ali meio que voltando o tempo todo. Estou tranqüilo em casa, e lá volta aquela frase, aquela sonoridade, aquela estrutura rítmica.
Às vezes, esse tipo de assalto acontece por eu ter ouvido uma música, por ter assistido a algum espetáculo, por ter visto alguma festa popular. Ainda outro dia, foi o dobrar de um sino em Tiradentes, Minas Gerais, para uma cerimônia fúnebre que disparou esta coisa de ficar sendo perseguido por uma música que não sei onde está nem como é, tomado por essa imagem sonora. Sou constantemente atormentado por isso. Ela volta e volta e não pára de voltar enquanto não for colocada no papel, enquanto não virar partitura. Deve haver algum prazer nessa sensação porque eu demoro muito para tomar coragem e passar para a partitura, por isso produzo muito pouco.
Há muito tempo, escrever música para mim deixou de ser uma atividade pública; alguma coisa que faço para músicos, que faço para um público, que faço para um evento qualquer. Tive de fazer isso recentemente em um concurso para professor; nos obrigaram a escrever uma peça de uns três minutos em mais ou menos seis horas. Seis horas em um casulo, trancados, com um vigia na porta e autorização para ir ao banheiro apenas acompanhado por ele. Foi gratificante ter provado para mim mesmo que era capaz de escrever uma música em algumas horas. Mas não é essa a minha dinâmica. A razão é simples. A música que escrevemos, contemporânea, raramente é tocada. Ninguém pede por ela. Ela não diz respeito ao lugar em que vivo, neste país cheio de sol e estardalhaços. Se, como professor de composição na UNICAMP eu passar dez anos sem escrever música, ninguém vai reparar. A imagem que me vem é de uma música pequena, um pequeno mundo cheio de detalhes, e o que o mundo de hoje menos quer é detalhe. Uma música cheia de detalhes que pede atenção às sutilezas. Me parece que o mundo de hoje é o do borrão de uma dimensão só, que sutileza é aquilo que é proibido. Essa música dificilmente se fará pública, visto que o público hoje em dia é ligado aos entretenimentos. Será ainda mais difícil ela se fazer pública; eu diria que ela está no avesso da cultura e que ninguém se dá conta de que ela existe. Quando digo que ela não faz falta, é para o público em geral. Aliás, o que é um público hoje em dia? Mas essa música, estranhamente, me faz falta, e tenho colegas que compartilham desse mesmo sentimento.
(...)
Então, é um pouco por isso que não sei o que dizer em um depoimento, porque faço uma música que aparentemente não faz falta aos outros. Faço algumas perguntas o tempo todo, sobretudo quando adveio este convite. O que é essa música que escrevo no mundo em que vivo? É uma música que está fora do mundo dos comuns. Claro, gostaria que ela pertencesse também à cultura dessa gente que nos rodeia, que está mais perto de nós. Mas o que é a cultura de uma gente? É tudo aquilo que leva a dançar, cantar, chorar, rezar, cozinhar, se acasalar. Sutilezas. E se
existe a cultura de uma gente, existe sempre a cultura daquele que não quer que essa cultura vingue: a trilha sonora dos momentos especiais, a música de passatempo para o chato quotidiano (aquilo que chamamos de entretenimento e que diz respeito diretamente ao trabalho capitalista: uma hora você trabalha, outra você vive o tédio de não estar trabalhando e aí você se entretém com alguma coisa até chegar a hora de ir trabalhar de novo).
Então, é um pouco por isso que não sei o que dizer em um depoimento, porque faço uma música que aparentemente não faz falta aos outros. Faço algumas perguntas o tempo todo, sobretudo quando adveio este convite. O que é essa música que escrevo no mundo em que vivo? É uma música que está fora do mundo dos comuns. Claro, gostaria que ela pertencesse também à cultura dessa gente que nos rodeia, que está mais perto de nós. Mas o que é a cultura de uma gente? É tudo aquilo que leva a dançar, cantar, chorar, rezar, cozinhar, se acasalar. Sutilezas. E se
existe a cultura de uma gente, existe sempre a cultura daquele que não quer que essa cultura vingue: a trilha sonora dos momentos especiais, a música de passatempo para o chato quotidiano (aquilo que chamamos de entretenimento e que diz respeito diretamente ao trabalho capitalista: uma hora você trabalha, outra você vive o tédio de não estar trabalhando e aí você se entretém com alguma coisa até chegar a hora de ir trabalhar de novo).
Não sei se fica claro que dançar e cantar não são entretenimento, são sim, manifestações de um povo, exigem uma técnica, um envolvimento, um fazer, uma forma de viver juntos. Já o entretenimento não pede nada, nem atenção ele pede. Você pode levantar, interromper quando quer, comer enquanto se entretém, falar de outra coisa. Não impede nem que você descanse. Bem, toda música corre riscos. Pode ser que não seja para entretenimento, mas não sendo da cultura de uma gente, ela corre o risco de ser enfeite de esnobes. Coisa para políticas interpessoais das mais baratas.
No fundo, essa música contemporânea até fica bem mantendo-se ausente; quase sem gravações, com ralas apresentações em concertos. A resposta não está em modificá-la. Algumas pessoas pensam assim: ter um público. Não é o meu caso; escrevo para me livrar de idéias que me incomodam.
Então me pergunto: Para que um depoimento de alguém que faz uma coisa que mal existe? Que estranho culto é esse? Sobretudo neste país pobre em que os afetos são tão elementares. Qual é o lugar de afetos tristes, lamentos, réquiens, sussurros, jogos de timbres? Qual é o lugar para essas pequenas coisas que nos arrancam de nossos apegos cotidianos quando o que se quer é justamente que não se saia do cotidiano? O lugar talvez seja o de resistir solitário ao que chamamos de um povo sem cultura, um povo que não consegue sequer chorar sem que seu choro vire entretenimento de alguém.
Dia a dia, é a espessura daquilo que chamávamos de cultura que se perde. Torna-se dia a dia mais rala e, se resiste, é em pequenas comunidades. E a cultura tornando-se rala, que espaço tem a música se não é para se ficar feliz nem para se curtir fossa nem para passar o tempo nem para tornar o ambiente mais agradavelmente cult? Que lugar tem hoje em dia uma música que fala da morte e da dor e que não faz parte da cultura de uma gente?
Volto para o meu mote inicial: Para que um depoimento de alguém que faz uma música que não existe, de um compositor que não existe, a não ser para ele mesmo e para um pequeno ciclo de amigos que o cercam? Digo isso porque sei que alguns dos meus colegas compositores também vivem coisas parecidas, e por isso mesmo passo a falar disso que não tem nada de pessoal, e fala menos de uma pessoa específica do que de uma forma de vida que acabou, de uma coisa que acabou no jogo de achatamento, de decomposição das dimensões do que se chamava por cultura.
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[leia a entrevista na íntegra: clique aqui]
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